O Lúcio Flávio Pinto, não sei se todos sabem, é um jornalista ótimo de Belém, expulso da mídia de lá por ser muito independente. Por isso criou o seu "Jornal Pessoal", mantido há mais de 20 anos apenas com assinaturas, sem publicidade, para que não tenha o rabo preso.
Vejam o final surpreendente - e revelador - desta matéria. O Lúcio Flávio é muito sutil e não pode se arriscar a ser processado, até pq já o é aos montes, sendo que nem casa própria possui. Ou mesmo um carro, por causa do estilo corajoso de vida que assumiu.
Para quem me conheceu há menos tempo, saibam que fui gerente da assessoria de imprensa da Vale no período Eliezer Batista. Mas quem mandava na comunicação externa eram os Mários Rolla, pai e filho, dos quais fui ajudante. Quero dizer que conheço um pouco do início desta história.
Eike Batista: de menino de ouro a bilionário
Lúcio Flávio Pinto - Maio 2012
Eike Batista. O x da questão. Rio de Janeiro: GMT, 2011. 159p.
Não é comum que o autor de um livro coloque sua foto na capa, mas Eike Batista fez isso em sua estreia no mundo das letras, aos 55 anos, com O x da questão. Ele aparece em fotografia produzida com requintes de modelo. Um sol, símbolo de luminosidade e de ideias, foi colocado ao lado de sua cabeça. Do outro lado, um subtítulo nada modesto: “A trajetória do maior empreendedor do Brasil”.
Espalhadas pelas 159 páginas do livro, em letras graúdas e com amplas margens no papel caro, para render mais do que numa edição comedida e sem tanta repetição na narrativa, 19 fotos; 14 delas são de Eike.
Puro exercício de narcisismo e egolatria? Também. Os responsáveis pela publicação são GMT Editores, do Rio de Janeiro. Mas Eike criou um nome de fantasia para a relação com os editores: a — sugestivamente — Primeira Pessoa. Combina com o conteúdo da obra: fazer recomendações e dar conselhos aos outros empreendedores a partir da vida e dos conhecimentos acumulados pelo autor. Juntamente com os já 30 bilhões de dólares que o credenciaram a ser reconhecido como o sétimo maior bilionário do mundo e o primeiro do ranking nacional.
Desde que lançou o livro, no final do ano passado, Eike incorporou à sua fortuna mais dois bilhões de dólares. O dinheiro veio da venda a investidores árabes de participação societária em um dos seus empreendimentos. Ele arremata os negócios sem sobressaltos nem mistérios. Faz questão de alardear o que ganha.
Esse procedimento, discrepando do padrão seguido por empresários brasileiros, o colocaria em posição singular, pioneira. Ele seria rico por merecimento, fruto do seu trabalho. Não esconde que tem muito dinheiro, que usufrui sem limites do poder que ser rico proporciona, abrindo as portas para todos os caprichos e vaidades. Para um autêntico culto à personalidade.
Esses seriam os sinais exteriores da riqueza, suas superficialidades. Em substância, Eike praticaria uma revolução: a do empresário limpo, trabalhador, criativo, com disposição para correr todos os riscos dos investimentos realizados.
Pagando integralmente seus impostos, remunerando bem os seus empregados, tratando com seriedade seus parceiros e concorrentes, e garantindo os ganhos dos que investem em seus projetos, ele pode apontar com certo desdém para os empreiteiros, que cita nominalmente. Eles são os apêndices do governo. E, ao mesmo tempo, seus predadores. Mas não o empresário de novo tipo, como Eike.
A narrativa da sua trajetória empresarial seria suficiente para confirmar a tese e atestar suas palavras. E isso porque ainda falta o anunciado novo livro, “já em curso”, que vai tratar apenas da sua “vida pessoal, laços familiares, pequenas histórias”, como se esta — escrita por seu amigo jornalista Roberto D’Avila — não fosse suficiente para consumir sua sede de exposição.
Com apenas 20 anos de idade, Eike se transferiu do civilizado circuito europeu entre a Bélgica, a Alemanha e a Suíça, para os calorentos e selvagens garimpos da Amazônia, depois de um estágio no comércio de diamantes no Rio de Janeiro. Tinha tudo para ser um engenheiro sofisticado e elitista, mas vestiu o traje de um Indiana Jones mais cerebral e audacioso (só com essa diferenciação aceita o paralelo, que ele próprio faz) para liderar “uma das maiores sagas empresariais da história recente do Brasil”, segundo a definição do prefaciador do livro.
Meio misterioso e místico, Eike não se atreve a explicar por completo sua sina: “É difícil explicar, mas há alguma coisa que é inata e escapa à genética, à formação familiar, à educação”. Seria uma condição ligada aos deuses, como na mitologia da Grécia antiga? Seriam os deuses astronautas?
Parecia estar escrito assim na estrela luminosa do futuro bilionário, que levou 20 anos para alcançar o seu primeiro bilhão de dólares e, a partir daí, subiu num ritmo vertiginoso para o topo. Agora visa o primeiro lugar, certo de alcançá-lo até 2015. E começou com dinheiro emprestado. Dinheiro que perdeu e nem assim comprometeu a confiança dos que lhe forneceram os recursos, renovados e ampliados de imediato. Com o que Eike implantou “a primeira lavra de ouro mecanizada industrial da Amazônia brasileira”, em Alta Floresta, Mato Grosso, com suporte em informações seguras de assessores canadenses, chamados para mensurar a jazida antes da decisão sobre o risco do investimento. Passou a colocar no bolso um milhão de dólares ao mês.
Já nesse empreendimento estava em boa companhia: da Paranapanema, que ficou com metade das ações e assumiu o compromisso de multiplicar por cinco a produção. Logo, como seria seu estilo, Eike pulou da mina de Novo Planeta para a de Novo Astro, no Amapá, de novo em companhia competente: a do industrial Olavo Monteiro de Carvalho e a do ex-ministro de minas e energia (como Eliezer Batista), Antônio Dias Leite, também uma usina de ideias com um arsenal de informações privilegiadas.
Em seguida, foi para a mina de Paracatu, em Minas Gerais, ao lado da inglesa Rio Tinto, na “maior mina de ouro do Brasil”. Depois, o projeto Minas-Rio, que vendeu para a Anglo American. Eike nunca foi um garimpeiro, mas seu rastro já era mais luminoso do que o do autor do maior bamburro do dito metal precioso.
Quais as credenciais que Eike apresentou aos dois empresários joalheiros, donos dos primeiros US$ 500 mil que ele torrou nos garimpos amazônicos? Ele sugere que pode ter sido a determinação do seu olhar, a impressão deixada a interlocutores de que cumpriria a regra não escrita de que sua palavra era lei, tudo à base da confiança, como nas máfias. Ou seria por ser filho do engenheiro (que se formou, ao contrário do mais famoso e bem-sucedido dos seus sete filhos, que abandonou o curso) Eliezer Batista.
É ele quem assina o prefácio do livro, circunlóquios em torno do tema monocórdio: este é meu filho, filho; e eu sou seu pai, pai. O pai quer nos convencer que o filho se fez por si e, por ter superado o pai, se tornou muito maior do que ele. Certamente é um capitalista de muito maior envergadura e um notável formador de fortuna. Mas qual o peso do pai nessa celebrada trajetória?
É pouco provável que os investidores do mundo das pedras preciosas e do ouro tivessem sido tão compreensivos com o empresário em formação se por trás dele não houvesse um pai como Eliezer Batista. Já então ele era um dos mais respeitados “quadros” da estatal Companhia Vale do Rio Doce (mas não apenas “um cumpridor de ordens”, como diz).
Com sua habilidade para agir nos bastidores e se impor por suas qualidades profissionais, Eliezer conseguiu a façanha de ser ministro de minas e energia de João Goulart e sobreviver na passagem traumática ao regime militar, implantado com o golpe de estado que derrubou o presidente da república.
A CVRD viveu a partir daí uma fase de profundas mudanças. Seus dias de vinculação ao mercado nacional tinham ficado para trás. Ela cobiçava os mercados externos e para atendê-los se expandiu pelo mundo. No exílio, embora dourado, que lhe permitiu dar uma educação de primeira aos filhos, Eliezer montou uma base comercial sólida da estatal na Europa. Mas foi o primeiro e o mais decidido na correção dos rumos na direção do mercado asiático.
Uma das informações mais preciosas do livro é ele que a dá — e num mero prefácio: fez mais de 170 viagens ao Japão. Por conta de excursões tão longas e desgastantes (“talvez fosse mais simples vender enciclopédias em Plutão”), em virtude da diferença de fusos horários, ele sofreu grandes desgastes físicos.
Mas — e esse detalhe ele não comunica aos leitores — se tornou o não residente que por mais vezes esteve no Japão. Uma façanha que merecia ser relatada em minúcias por esse “caixeiro viajante da mineração”. É um dos capítulos mais importantes da história da Amazônia e do Brasil contemporâneo.
Só dessa maneira Eliezer pôde contribuir para que a mais rica província mineral do planeta se tornasse uma possessão cativa (e, portanto, na essência, colonial) do Japão, em primeiro lugar, e, agora, de forma mais ampla, da China. A partir daí, um universo ainda sem dimensão bem definida se ampliou graças às riquezas existentes no subsolo da Amazônia, em especial do Pará.
O filho pode dizer que, a partir desse núcleo comum, alargou a perspectiva para o âmbito da logística e de sua associação à exploração econômica, em função da sua visão em 3D (de 360 graus), a melhor do mercado, que integra todas as atividades: uma visão “holística”. Sua inovação consistiu em “introduzir o conceito de sistemas integrados de energia com a exploração e venda de recursos naturais associadas à geração e comercialização de energia elétrica”.
Ao invés de um grau de acerto de 17 mil probabilidades para uma de sucesso, como na busca do ouro, margens muito menores, de risco às vezes próximo do zero. Ele não queria ser um Bill Gates do ouro, que descobriu, valorizou e vendeu nove minas, mas restrito a esse setor, no qual foi “monofásico durante 20 anos”. Queria mais e mais. Encontraria.
É o caso do pré-sal. Eike foi o maior arrematador de blocos, 21, somando 30 mil quilômetros quadrados, na 9ª Rodada de Licitações promovida pela Agência Nacional do Petróleo, em 2007. Dizem que Eike pegou o filé do petróleo.
Dizem isso aqueles que circulavam pelos mesmos ambientes internos da estatal, onde Eike recrutou, a peso de ouro, os “talentos que vieram da Petrobrás” para a sua empresa petrolífera, a OGX, posta no alto da linhagem de firmas que ele batiza sempre com um xis, na antevisão da multiplicação de dinheiro que irão proporcionar.
A empresa foi constituída apenas quatro meses antes do leilão da ANP se realizar. Nasceu com o DNA do êxito, diriam os empresários. Hoje é “a maior companhia privada brasileira de petróleo e gás em áreas marítimas de exploração”, apregoa o seu chefe. Ela acaba de se tornar dona de uma jazida de gás, no Maranhão, que pode atender a um terço do consumo brasileiro e possui reservas equivalentes à metade dos depósitos de gás da Bolívia, os maiores do continente, podendo atender a uma refinaria Premium, como a que a Petrobrás implanta no Estado. Um espanto! Com direito ao acento de exclamação.
Já a sua OSX, a “Embraer dos mares”, dedicada a construir ou operar equipamentos usados na exploração e produção de petróleo, presta serviços a uma fatia do mercado que precisará de US$ 200 bilhões em equipamentos até 2020, dos quais espera ficar com US$ 30 bilhões. Além de exportar, já que terá o estaleiro mais moderno do mundo.
Tudo em Eike é superlativo. Ele comanda 20 mil pessoas reunidas no grupo EBX. “Crio riquezas do zero e me orgulho disso”, apregoa, lembrando que assinou “um dos cheques de mais alto valor do mundo”, quando pagou US$ 450 milhões (ou R$ 700 milhões) de imposto de renda sobre uma das suas muitas vendas.
Não é bem assim. Quem teve acesso aos estudos de Eliezer Batista sabe que ele já pensava nos investimentos que o filho viria a fazer. E continua a pensar e a formular projetos em sua prancheta mental, projetos que talvez logo recebam o carimbo da marca de Eike Batista, o elemento vivo no esquema de variáveis materiais com as quais Eliezer lida, como um alquimista dos negócios.
Ele próprio não deixa para terceiros a avaliação do que fez, “talvez o maior investimento já realizado no país tanto pela ordem de grandeza das cifras envolvidas como pelo impacto sobre a economia nacional, a visão de longo prazo e o eixo transformador”.
Tem razão em se orgulhar do que concebeu e criou. Talvez nem tanto em relação àquilo que extrapolou suas previsões e cálculos. O Brasil perdeu e perderá muito nesses domínios do além-fronteiras, além-conhecimentos. É onde se movimenta esse menino de ouro que virou um dos maiores bilionários do planeta.
Mas ele seria mesmo único e distinto dos capitalistas criados e mantidos na promiscuidade com o poder público, um Galahad dos novos negócios globais? É o que ele pensa e proclama para todos ouvirem — e reconhecerem. Considera-se no “centro do mundo”, que está “no eixo Brasil-Índia-China”. Surpreendentemente ignora a Rússia. Não por ser jejuno nesse país, um dos seus raros casos de insucesso: contabilizou US$ 30 milhões de prejuízo, ao ser expulso de um empreendimento, ao qual faz referência meteórica, sem maiores informações.
Não foi uma saída programada nem desejada: Eike teve que praticamente fugir, abandonando o negócio “ao perceber que estavam preparados para me retirar a propriedade e o ativo”. Parece ter sido uma experiência traumática, a ponto de levá-lo a excluir a Rússia da fantasiosa sigla dos países emergentes do bloco dos Brics, ao qual a África do Sul se agregou mais recentemente.
Mas não há semelhanças entre a carreira empresarial de Eike ao longo dos 27 anos da redemocratização do Brasil e o surgimento dos “barões ladrões” nos 21 anos que se seguiram ao fim da União Soviética, com sua travessia conturbada para o capitalismo? Sem dúvida alguma esses empresários de “novo tipo” se tornaram milionários ou bilionários à sombra do aparato de Estado, de forma explícita ou mais sutil, e com sua ajuda para abrir caminho às fontes de recursos naturais, as commodities que circulam pelo mundo com seus preços valorizados e quantidades gigantescas.
Eike/Eliezer Batista não constituem exceção nesse enredo internacional. O que distingue os dois grupos de empreendedores são os países que lhes servem de fundo. Ou de fundos.
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Lúcio Flávio Pinto Jornal Pessoal, O jornalismo na linha de tiro Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica Memória do cotidianoA agressão (imprensa e violência na Amazônia)
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